Marcello Henrique Corrêa e Heryka Cilaberry
Uma invenção chinesa, lançada há cerca de dois anos, alimenta os
sonhos de muitos fumantes que lutam contra o vício: parar de fumar,
fumando. Trata-se do cigarro eletrônico, objeto que tem gosto e
aparência de cigarro, mas não passa de chips, baterias e cartuchos de
nicotina. Juntos, esses elementos permitem ao fumante ter a sensação de
tragar, sem, no entanto, estar sujeito aos malefícios do tabagismo, já
que não produz fumaça, responsável pelos principais problemas clínicos
do cigarro comum.
Apesar do otimismo das propagandas do cigarro eletrônico, a
Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou, recentemente, que não se
sabe nada sobre a eficácia e segurança do produto. Segundo o órgão, é
preciso verificar que substâncias, além da nicotina, estão envolvidas no
processo.
O método, que é semelhante a outros antitabagismo, como chicletes e
adesivos de nicotina, se destaca pela possibilidade de reproduzir o ato
de fumar, o que seria supostamente menos traumático para a pessoa que
luta contra o vício. A proposta é reduzir gradativamente o nível de
nicotina dos cartuchos, até que o vício tenha sido eliminado.
Para entender os impactos desse modo diferente de parar de fumar, o Olhar Vital conta com a opinião de dois especialistas no assunto.
José Mauro Braz de Lima
Coordenador do Centro de Estudos de Prevenção e Reabilitação do Alcoolismo (Cepral) do Instituto de Neurologia Deolindo Couto
“Essa é uma questão bem mais complexa do que falar sobre uma
dependência puramente química. O tabagismo se configura como uma das
principais dependências do homem moderno, com uso compulsivo, freqüente.
Quando a pessoa é privada desse hábito, apresenta sintomas de ansiedade
e mal-estar, caracterizando o grau de dependência. Precisamos
relacionar isso com uma série de fatores, além da nicotina.
O cigarro tem um aspecto interessante, comparado a outras drogas.
Percebemos que a repressão ao seu uso, que ocorre desde meados do século
XX, está relacionada à prevalência de doenças como câncer e
complicações cardiovasculares, comprovadamente relacionadas ao
tabagismo. Não se fala, entretanto, de mudança de comportamento de
fumantes, como ocorre em outras drogas, como cocaína, craque e maconha. O
tabagismo caracteriza-se por essa condição clínica importantíssima, mas
não provoca alterações comportamentais importantes sobre a conduta do
usuário.
Quanto ao cérebro, parece que o cigarro não provoca tantas
alterações. As mais evidentes são as sensações de tranqüilidade e de
excitação. Não se sabe dizer, portanto, se a nicotina é excitante ou
tranqüilizante. O que eu quero dizer é que a ação da nicotina sobre o
cérebro ainda não foi comprovada e determinada claramente. É preciso que
se realizem mais trabalhos sobre isso, para saber o quanto a nicotina
atua sobre o cérebro.
Nesse sentido, é importante valorizar algumas coisas que parecem ser,
de fato, pertinentes no hábito de fumar. A partir disso pode ser um
pouco mais fácil entender o cigarro eletrônico.
É notável, a partir da observação empírica, que muitas vezes o
cigarro apagado alivia o stress emocional. Vamos voltar à questão
neuro-funcional. É interessante perceber que o ato de fumar mexe com a
mão, com a boca – terminações sensoriais das mais importantes. Também
envolve os estímulos visuais, o olfato e o gosto. Cada função é
integrada e trabalhada em áreas bem definidas. O fato de se pegar um
cigarro, ocupando a mão e a ponta dos dedos, ou levar o objeto à boca,
são estímulos que provocam sensações extremamente importantes.
Para entender essa questão do hábito de fumar, é importante levar em
conta o quanto esses estímulos representam. Quando usamos esses
sentidos, estamos atraindo outros estímulos. Portanto, usar a mão e a
boca já representa um fator tranqüilizante, não só no hábito de fumar,
mas também em esculpir uma cerâmica ou tocar um instrumento musical,
porque tira o foco da consciência de problemas do cotidiano, por
exemplo, para concentrar apenas na mão.
Isso explica as várias formas de tratamento com diversas terapias,
como música, artesanato e ginástica, entre outras. Observamos que, assim
como a pessoa se vicia no ritual de fumar um cigarro, é possível que
alguém se ‘vicie’ em ginástica, em internet, em jogo. São todos hábitos
compulsivos que se pode estabelecer no comportamento de um indivíduo sem
que estejam relacionados a substâncias químicas. Essas pessoas ficam
tão habituadas a essas compulsões que, se não fazem aquilo um dia,
sentem falta e passam mal, assim como o fumante. Meu temor é que o
cigarro eletrônico simplesmente substitua o cigarro comum nessa relação
de dependência.
A partir dessas considerações, percebemos que as substâncias
envolvidas agem, sim, sobre o cérebro, mas é preciso levar em conta os
aspectos psicológicos, comportamentais e sociais, que vão interagir com
esse cérebro. Deixo claro que, como médico, não sou a favor do
tabagismo. O melhor é não usar e seguir sua vida dando conta de seus
problemas de outra forma, não pelo álcool, pelo tabaco e por outras
drogas.”
Alberto Araújo
Diretor do Núcleo de Estudo e Tratamento do Tabagismoda UFRJ
“Antes de tudo, é preciso explicar como são produzidos os e-cigarettes.
O cigarro eletrônico fabricado na China é composto por um tubo metálico
que contém um recipiente de nicotina líquida e outras substâncias não
identificadas, comercializadas em cartuchos recarregáveis. Quanto
ao seu efeito no organismo, Douglas Bettcher, diretor da Iniciativa
Contra o Tabaco da OMS afirma que ainda não existem provas de que ele
seja mesmo seguro e ajude os fumantes a abandonar o vício. Pelo pouco
que conhecemos, é possível presumir que este e-cigarro seja muito nocivo
para quem quer parar de fumar e para quem quer continuar fumando.
Imaginem o impacto de uma invenção como essa: as pessoas se
sentirão à vontade para fumar livremente em ambientes fechados; pois não
produz fumaça. Professores e alunos poderão fumar em salas de aula;
médicos poderão fumar em seus consultórios e pacientes nos hospitais;
crianças fumarão escondido sem serem notadas. Isso faria com que todos
os esforços para regulamentar os ambientes livres de tabaco fossem
descartados a partir da disseminação de uma crença de que eles não
causarão mal a terceiros.
O cigarro eletrônico além da nicotina, ao que tudo indica, contém 50
substâncias cujo teor, quantidade e composição ainda são desconhecidos.
Assim, ele também causa e mantém a dependência, por simular exatamente o
ritual e as associações comportamentais que o cigarro convencional
condiciona.
Além disso, as substâncias químicas que permitem que a nicotina seja
liberada podem causar danos parecidos com aqueles já produzidos pelo
cigarro convencional ou até outros problemas de saúde.
As substâncias psicoativas do cigarro, da qual a nicotina é a maior
expressão, estimulam uma determinada área do cérebro localizada na Área
Tegumentar Ventral, conhecida como nucleus accumbens a
liberarem uma grande quantidade de neurotransmissores, dos quais a
dopamina se destaca. Estas ações fazem parte de um grande sistema
denominado “Sistema de Recompensa Cerebral” que todos os indivíduos têm
desenvolvido.
No caso dos fumantes, estes neurotransmissores geram durante um
determinado período, em torno de 40 minutos, uma sensação de prazer, de
alívio e satisfação, ao mesmo tempo aumentam a concentração, o
metabolismo corporal e excitam o indivíduo.
No campo da Saúde e Meio ambiente, adota-se cada vez mais como
princípio norteador na introdução de novas tecnologias, o denominado
“princípio da precaução”, ou seja, a sociedade deve discutir,
informar-se e antecipar-se a medir os potenciais riscos de qualquer
produto para consumo humano, adotando-se este princípio, este e-cigarette
deveria ser proibido. O maior perigo está em não se saber quais
substâncias químicas misturadas à nicotina liquida são encontradas no
cartucho.
Ainda que o e-cigarro só tivesse a nicotina sem a adição de outras
substâncias danosas, valeria a pena usá-lo, sabendo que a essa é uma das
mais potentes drogas psicoativas? É verdade que ela pode ser usada para
ajudar o fumante a se tratar do tabagismo, mas são métodos já bastante
testados e seguros para a maioria dos pacientes, refiro-me no caso aos
adesivos, gomas e outras formas de administração que ainda não existem
no Brasil, como os inaladores, spray nasal e pastilhas.
No caso do e-cigarette é bem possível que a pessoa não
resolva mais parar de fumar e só troque o veículo de liberação da
nicotina (o cigarro convencional pelo eletrônico), com o risco de
ingerir inúmeras e desconhecidas substâncias químicas que serão
liberadas em sua circulação. É um risco que as pessoas não devem correr.
É como trocar seis por meia dúzia, na prática continuará fumante e não
há nenhuma garantia de que este método venha ajudar a pessoa no futuro a
parar de fumar, tampouco de não ter câncer de pulmão e em outros
órgãos.
A prevenção é a principal arma contra o tabagismo, mas para aqueles
que já se tornaram dependentes, o melhor caminho é procurar por um dos
70 centros de tratamento cariocas. Basta ligar para o Telessaúde:
2273-0846 e informar-se sobre os locais mais próximos de sua residência
ou de trabalho. Quer deixar de fumar? Faça uma tentativa séria com
profissionais competentes e preparados para ajudá-lo nesta tarefa.
Proprietários das marcas de cigarro eletrônico ou convencional só querem
o seu dinheiro e acabam lhe tirando a beleza, a intensidade e a duração
da vida. Pense nisso, para ter mais qualidade no viver. E-cigarette com certeza não é a solução.